Tropa de Elite - continuação


Sustentada (e, claro, mimada) por correntes soldadas pelo governo, a indústria cinematográfica brasileira raramente gosta de bater de frente com quem lhe garante a mesada. Tropa de Elite não bate apenas de frente com seus patrocinadores estatais. O longa de José Padilha (Ônibus 174) choca-se como um caminhão de gasolina contra diversos setores da sociedade. A primeira parede a desmoronar na obra é a temida Polícia Militar carioca, mostrada como uma instituição jogada às traças e risível. A segunda é a política, representada sem perdão por crápulas egoístas que, diretamente, criam o próprio mal que prometem combater. A terceira parede - a que nenhum longa de ficção havia tido colhões para destruir - é a própria sociedade brasileira, um gênero incrível de habitante terrestre que não faz nada além de proteger os próprios interesses e criar uma redoma de ignorância só quebrada quando passa por uma tragédia. Bem, o lado bom é que você não precisa mais passar por uma tragédia para acordar. Tropa de Elite joga o Brasil como ele é, sem maquiagem, heróis encapuzados ou soluções fáceis. O país da ética individual está escancarado pela primeira vez de forma suja e realista - e não em formato de comédia, como nos anos 70. Nesse mar de corrupção e violência que não muda desde 1997, data-cenário do longa, não é de se espantar que um capitão de uma tropa de elite cruel e repressora seja visto como herói. O capitão Nascimento, que Wagner Moura constrói de maneira visceral, é o exagero de nossos desejos de melhoria. É a raiva contra senadores nunca cassados, juízes com penas malucas, matadores fora das grades e as centenas de assassinatos cometidos todas as semanas. Se ele é a solução ou a raiz de outro problema, não é o que Tropa de Elite quer provar. O longa só baixa todas as cartas e apela para um sentimento de cidadania cujo reflexo é cada vez mais opaco no Brasil. Se for o começo de algo, melhor. Antes de mais nada, Tropa de Elite é um filmaço de ação, corajoso, bem escrito e com um elenco mais-que-afiado. É para se ver no cinema, se divertir, discutir num bar depois e não esquecer tão cedo.
Além da Linha Vermelha
Fenômeno de venda nos camelôs, Tropa de Elite quer passar por cima da polêmica da pirataria e dos estranhos acontecimentos durante as filmagens para se tornar o melhor (e mais corajoso) filme de ação da história do cinema nacional

Hoje é dia de Flamengo e Botafogo no Maracanã. Dia de clássico no Rio de Janeiro muda o panorama da Cidade Maravilhosa. O povo parece mais alegre que o Normal. O tráfego, por outro lado, deixa qualquer um irritado. O trajeto entre o escritório da Paramount, onde havia acabado de ver em primeiríssima mão a versão definitiva do que promete ser o maior sucesso do cinema no Brasil em 2007, e o quartel-general da produção de Tropa de Elite não duraria quinze minutos. Meia hora depois, ainda estamos presos próximos à Lagoa Rodrigo de Freitas. Aproveitando o turismo lento, o colaborador carioca de SET, André Gordirro, puxa o corriqueiro papo cinematográfico. O taxista ouve a conversa com o canto das orelhas. "Cêish trabalham com o quê?", pergunta com o jeitão malandro, ouvindo de volta que somos jornalistas especializados em cinema. "Pô, cêish tão sabendo do filme que tão querendo proibir de vender?" Qual, Tropa de Elite? "Esse merrmo, o filme dos caveira", diz, já empolgado.
Pelos próximos dez minutos, o taxista anônimo conta que já viu o longa duas vezes ("Adoro quando a fuleiragem se fode! Tenho só um táxi, mas pago dois porque roubaram o outro.") e considera alguns dos eventos chocantes do primeiro longa de ficção de José Padilha (Ônibus 174) fichinha perto do que já viu. "Na Vila Aliança (Baixada Fluminense), tem dias que nem o caveirão (carro blindado do Batalhão de Operações Especiais do Rio, o Bope, também apelidado pelo povão de 'Caveira') sobe. Os malucos lá conseguiram uma arma chamada caça-andróides, que atravessa o carro como papel." O motorista nos deixa numa pracinha calma, no pé do morro verde do Jardim Botânico. Não foi nem preciso bater na porta da produtora para entender o nível de penetração de Tropa de Elite, cuja versão inacabada vazou a três meses da estréia oficial e foi parar nas mãos de camelôs e na Internet. Com o ator baiano Wagner Moura no papel de um oficial do Bope, o longa se transformou em fenômeno cinematográfico inédito no país antes de ser exibido em uma única sala de projeção. Do taxista ao nerd que baixa arquivos de vídeo no computador, o filme de ação que não tem medo de mostrar como funciona a polícia, o Estado e a própria sociedade brasileira virou obrigação desde que a primeira cópia escapou no fim de junho de forma misteriosa.
Bem, o mistério acaba hoje. E eu ainda nem sabia disso.
Nem José Padilha. O diretor nos recebe no meio do caos dos últimos dias de finalização da cópia derradeira de Tropa de Elite, a famosa versão diferente da vendida nas ruas. Em três dias, o cineasta, que ganhou reconhecimento internacional por Ônibus 174, embarca para Los Angeles para terminar a remixagem e bater o martelo em relação ao corte final. O escritório está apinhado de secretárias e assessores correndo feito ratos de feira. O próprio celular de Padilha não pára quieto. Entramos no seu pequeno escritório e um papo em inglês já está a pleno vapor. Tentamos não ouvir os segredos, mas impossível deixar de notar as palavras "Academy Awards" na conversa. O diálogo finalmente termina. O celular vibra novamente. Desta vez, algum jornalista precisa de uma declaração do diretor sobre as investigações da cópia pirata. "Acabei de recusar uma matéria para o Jornal da Globo", explica ao interlocutor. "Me perdoe, mas não quero fazer propaganda de cópia pirata, porque meu filme ainda não está disponível de verdade e a investigação não acabou."
O diretor carioca não deixa de ter razão. Desde que correu a notícia de que Tropa de Elite estava sendo vendido nos camelôs do Rio de Janeiro, Padilha fez questão de avisar de não se tratar do corte real e que iria investigar até o fim quem havia vazado a cópia. Colunistas fluminenses o acusaram de ter passado o DVD para o mercado negro como uma espécie de jogada de marketing. A polícia, que geralmente faz vista grossa a esse tipo de comércio, começou a fechar banquinhas e apreender centenas de unidades de "genéricos", inclusive com o nome mudado - as imagens de capa traziam policiais, a imagem do Cristo Redentor e cartuchos de bala sob o título Bope - Tropa de Elite. De repente, o longa nacional virou um fenômeno (40 mil downloads por dia). "É uma loucura", exclama a atriz global Fernanda Machado, dona do papel da menininha abastada que trabalha na ONG de uma favela. "Toda a equipe técnica da Globo já viu o filme. Meu apelido entre eles agora é caveira."
Apesar dessa "divulgação em massa", ninguém envolvido diretamente com o longa está saindo no lucro. "Mesmo que o filme seja um enorme sucesso nos cinemas", divaga Padilha. "Nunca saberemos se teria um público maior. Não quero avaliar minha obra a partir de uma cópia não-finalizada que vazou antes. Pirataria é crime e deve ser tratada assim. Vamos descobrir quem foi. Pode acreditar." Bem, mesmo se não quisesse acreditar, seria difícil continuar cético quando Rodrigo Pimentel, ex-soldado do Bope e co-roteirista de Tropa de Elite, entra eufórico pelo escritório. "Pegamos todos eles!", diz com o telefone ainda nas mãos. "Como assim?", responde um Padilha incrédulo. "Pegamos todos eles, porra. Não foi apenas um cara, foram três. Uma quadrilha." Olhei para os cantos das paredes procurando câmeras de uma pegadinha, mas o cenário estava se formando de verdade. A polícia civil carioca acabara de informar que um dos suspeitos de fazer a cópia confessou que ele e seus colegas da empresa de legendagem Drei Marc tinham sido responsáveis pela escapada. Pior: o delator teria dito que Alexandre Mofatti, um ator do longa, estava com uma das cópias originais. "Quem é Alexandre Mofatti?!", grita Padilha, exigindo uma ficha completa do acusado. "Porra, espero que pelo menos seja alguém que faça um PM tradicional", brinca.
O desejo, infelizmente, não se concretiza. Mofatti faz o capitão Carvalho, um dos cabeças do Batalhão de Operações Especiais, grupo tido como incorruptível e extremamente violento, que é liderado por Wagner Moura na pele do capitão Nascimento, prestes a ter um filho e pressionado para encontrar um substituto para largar o batalhão. O anúncio da descoberta dos culpados não facilita para o celular de José Padilha. "Bem, pelo menos isso joga por terra a babaquice da teoria de que tudo isso era jogada de marketing", comemora o cineasta, já conversando com jornalistas, delegados e representantes do governador do Rio, Sérgio Cabral. "Marketing é um caralho!"
ÉPICO POLICIAL
José Padilha não pode reclamar de todas essas confusões. Quando estava fazendo Ônibus 174, documentário sobre o seqüestro que terminou com as mortes de uma refém e do bandido depois de uma ação desastrosa da polícia, o diretor começou a ouvir depoimentos de oficiais sobre a situação da PM no Rio e já tinha sido declarado persona non grata pela Secretaria de Segurança Pública do então governador Anthony Garotinho. "Muitos tinham medo de falar, mas, por trás das câmeras tive uma noção de como o sistema funcionava e como poderia levar isso ao limite em outro filme", recorda Padilha, que escreveu um roteiro inicial de 187 páginas com Rodrigo Pimentel, um dos autores do livro Elite da Tropa - que, tirando algumas situações, não tem nada a ver com o longa. "O texto contava toda a história do Bope, desde o começo." Com o script nas mãos, o diretor conseguiu financiamento da Weistein Company, novo estúdio dos fundadores da Miramax, de 3 milhões de reais - 10 milhões foi o orçamento total. Parte da grana foi para enxugar o épico policial ao contratar o roteirista de Cidade de Deus, Bráulio Mantovani. "O filme era narrado por duas pessoas, tinha personagens demais", conta Pimentel, nos acompanhando em almoço rápido numa loja de conveniência a poucos metros da produtora.
O calhamaço do primeiro tratamento também serviu para convencer Wagner Moura a assumir o papel de protagonista e narrador do filme. "Era um roteiraço", empolga-se o astro de Paraíso Tropical. "O único cara que precisava estar no filme com certeza era o Wagner. Ele é conhecido por ser bom ator e bom ator faz qualquer papel." Mesmo assim, a missão não foi fácil. Moura teve de servir de referência para os outros membros do elenco, menos conhecidos e dentro da filosofia de "improvisação" que marcaria as filmagens. "Eu falava como seria a cena, mas a marcação era mais livre para obter realismo e um estilo documental", revela Padilha. Além disso, os atores também precisaram passar por dois meses de ensaios e pelo próprio treinamento cruel do Bope. "O pau cantou", confirma o cineasta. "Mas agora os atores podem invadir uma favela. Viraram uma máquina mortífera." "Eles diziam que estávamos mais preparados que a PM convencional", recorda Moura. "Mas isso é porque os soldados do Bope têm um amor tão grande que trabalhavam muito para não sair nada errado."
Alguns atores desistiram no meio do caminho, outros reclamaram dos métodos ultra-realistas, mas não há com negar que Tropa de Elite seja talvez a ficção mais realista do cinema desde Vôo United 83, de Paul Greengrass. "Tinha de ser tapa na cara e comida no chão", conta Caio Junqueira, o Neto, novato na PM corrupta que, ao lado do amigo Matias (André Ramiro), tem um forte senso de ética e só o realiza ao enfrentar o treinamento do Bope. "Os atores criticam porque não entendem que esse método era necessário para conseguirmos o resultado documental." Mesmo assim, os próprios envolvidos não escapavam incólumes. "Fica algo dentro de você, é inevitável", confessa Wagner Moura.
A situação não melhorou quando, em pleno set no morro Chapéu Mangueira, um lote de armas cinematográficas foi roubado e funcionários desertaram com medo. "Foi uma filmagem estranha", admite Padilha. "As armas foram roubadas, a polícia parou as filmagens para entrar na favela e tive uma dificuldade imensa para conseguir autorização para filmar." O diretor não acredita que o Bope, receoso de como seria retratado na obra, tenha feito isso como forma de aviso - o que seria irônico, já que, apesar de mostrado como um grupo de repressão extrema, o Bope é o mais próximo do que podemos chamar de heróis em Tropa de Elite. "O resultado de um filme passa pela percepção do público", acredita o cineasta. "Para a população que viu a cópia pirata, Tropa de Elite é uma espécie de vingança." "Tenho visto muita gente falando que o Bope é o herói do filme e fico estarrecido com isso", fala Moura.
A revolta popular em forma de longa não é difícil de entender. Tropa de Elite é o verdadeiro movimento "Cansei". Na pele de Nascimento, não há como deixar de enxergar o exagero do sentimento de desamparo que habita cada setor da sociedade honesta e a coragem do roteiro em não perdoar nenhum setor dela. Até os principais atingidos pela produção reconhecem que alguma coisa precisa ser feita. "Já vi capitão importante da PM ligando para o Pimentel e dizendo: 'Achei o filme do caralho, mas vou ter de dizer que é uma merda'", conta Padilha. "Já fui abordado por policiais e virei ídolo. São tão despreparados que não entendem", afirma Junqueira, logo sendo rebatido por André Ramiro: "Não sei se é questão de entender. O policial corrupto não tem a menor vergonha em ser corrupto".
Ao fazer essa diferença entre o batalhão patético da PM carioca, no qual cabo Tião cuida de uma oficina em frangalhos, e o outro cabo precisa "rir para fazer rir" ao pedir suas primeiras férias em quatro anos, Tropa de Elite toma duas atitudes inéditas no cinema nacional. A primeira é escancarar o estado calamitoso de uma instituição esquecida. "O Estado abandonou a polícia", ressalta Pimentel. "A polícia não é um detalhe. Espero que seja o primeiro de muitos filmes sobre ela", clama Padilha. O segundo ineditismo é conseguir realizar uma obra na qual o policial é o herói da trama. "Os filmes no Brasil sempre mostram o ponto de vista do marginal. É Pixote, Zé Pequeno, Sandro Nascimento. Não havia nada com a visão do policial. Queria mostrar que era possível falar sobre violência urbana de uma nova maneira", diz o cineasta. "O que me tocou no longa foi o fato de ser sobre dois jovens querendo entrar para a polícia para fazer algo de bom", explica Fernanda Machado. "O bandido sempre é a estrela da história. Agora, não é mais assim", concorda Junqueira.
Boa parte dos méritos, no entanto, está nas melhores cenas de ação já coreografadas no cinema brasileiro. "Há um tabu que brasileiro não sabe fazer cena de ação", crê José Padilha. "E esse tabu está certo." Para se livrar disso, o carioca perguntou aos soldados do Bope qual o melhor filme sobre combate urbano. A maioria apontou Falcão Negro em Perigo, de Ridley Scott. Padilha enviou o roteiro para Phil Nielson, coordenador de dublês do blockbuster. Ele topou reduzir o salário por causa do script e da vontade de conhecer o Brasil. "Phil ficou impressionado porque estávamos arrebentando sem as mesmas condições que teria nos Estados Unidos", recorda o diretor. "Os americanos ficaram chocados com nossos métodos. Eram muito crus", rebate Wagner Moura. Nielson ajudou até a metade das filmagens. Quando Neto invade a favela e deflagra uma guerra entre policiais e traficantes, Padilha ainda teve o auxílio nos seis dias de batalha. O mesmo não acontece na caçada final ao traficante Baiano (Fábio Lago). "Já tinha aprendido tudo. É tudo questão de tecnologia e timing", explica.
A mesma frase pode ser aplicada para o lançamento de Tropa de Elite nos cinemas. Apesar de as alterações não serem drásticas (tem uma cena a mais com Caio Junqueira, mudanças no off de Wagner Moura e a ausência das chamadas de capítulos), o longa precisa confirmar sua condição verdadeira de hit e não apenas um produto de consumo underground. "Nem posso andar na comunidade. Todo mundo quer tirar uma foto", diverte-se o novato André Ramiro, que saiu da bilheteria de um cinema para ganhar um dos papéis principais no longa do ano. "Se vier prêmio, ótimo. Pensou como ia ser triste se ninguém assistisse a esse filme?", questiona Fernanda. Enquanto os festivais e o Oscar não chegam, aproveito os últimos minutos no Rio de Janeiro para me despedir de todo o elenco e do diretor reunidos na pracinha. Já no táxi rumo ao aeroporto, o rádio noticia mais um tiroteio no Morro Pavãozinho. Um soldado do Bope ficou ferido. Dois traficantes foram mortos. A realidade, infelizmente, anda de mãos dadas com a ficção.



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abcs