Tropa de Elite



Ótimo que todo mundo a esta altura do campeonato já tenha visto Tropa de Elite (2007). Questões de pirataria à parte, fica mais fácil resenhar e discutir o filme quando o leitor já sabe do que estamos falando. E não há meios de ciscar em torno do trabalho do diretor José Padilha - Tropa de Elite chama todo espectador a formar uma opinião.
Antes de mais nada, porque o filme não se apresenta a nós na forma de entretenimento escapista. A narração em off de Wagner Moura desde o primeiro minuto passa a certeza de que aquela história que será contada não foi necessariamente construída para a imersão na ficção, mas para ilustrar uma realidade. Realidade essa que é mais próxima ou mais distante de nós, dependendo de quem assiste, mas ainda assim uma realidade inegável.
O fato de Padilha ter despontado como documentarista em Ônibus 174 pesa. A levada de Tropa de Elite tem o didatismo dos filmes que não deixam lacunas. É ação atrás de ação, exposição atrás de exposição, pontuadas pelo discurso de Nascimento, o capitão interpretado por Moura em tom professoral. Discurso e filme se confundem, ambos dirigem-se ao espectador numa via de mão única.
A favor da narração em off, vale dizer que ela não se limita a verbalizar a cena que se mostra. Nascimento é mais um comentarista da ação: o filme abre com uma desastrosa entrada da Polícia Militar no Morro da Babilônia, invasão essa que desencadeia troca de tiros com o tráfico e que força o BOPE a intervir. Wagner Moura sequer mostrou o rosto no filme ainda, mas já sabemos bem o que ele pensa da situação - "se é pra fazer direito, deixe o BOPE fazer sozinho".
Nascimento prega a filosofia dominante dentro do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar, divisão independente da PM: o Rio de Janeiro está em guerra, e nas guerras não se fazem prisioneiros. O livro em que o filme se baseia, Elite da Tropa, de André Batista, Rodrigo Pimentel e Luís Eduardo Soares, mescla experiências de um oficial do BOPE, Pimentel, com análises da situação do narcotráfico no Rio. Enquanto ponto de vista do Batalhão, portanto, Tropa de Elite não deixa (e nem deixaria) de disseminar a visão de mundo dos oficiais que compõem a guarda.
Como fazer, então, com que o espectador "humanista" compre o discurso de Nascimento? O diretor e o roteirista Bráulio Mantovani sacam uma inteligentíssima manobra não-linear. Como o tiroteio abre o filme, logo supõe-se que encerrará também, como bom clímax e bom flashback. Acontece que o caso da Babilônia se resolve no meio do filme. A partir da metade, como se Tropa de Elite começasse de novo, acompanhamos como outros dois PMs, Neto (Caio Junqueira) e Matias (André Ramiro), centrais na subtrama da Babilônia, entrarão para o BOPE.
Não há como rejeitar a filosofia de Nascimento, particularmente pela ótica de Neto e Matias, porque José Padilha institui entre os três protagonistas uma relação de gratidão. Neto e Matias meteram-se numa enrascada na Babilônia e Nascimento subiu para salvá-los. Imaginou-se (pelo menos eu imaginei) que o tiroteio no baile funk concluiria o filme, mas no fundo o caso da Babilônia é só o estopim.
Melhor dizendo, é o pretexto.
A lógica é absolutamente genial em seu maquiavelismo: quando Nascimento, personificando o Batalhão, estende a mão a Neto e Matias, firma-se ali um compromisso. Os dois PMs idealistas, que passaram o primeiro terço do filme camelando em meio a papeladas e viaturas encalhadas, tornam-se os Faustos (particularmente o racional Matias) do poderoso Mefistófeles que é Nascimento. Não tem nem o que discutir: em oposição à paralisia purgatorial da PM, a disciplina do BOPE é um quente espetáculo dos infernos.
Se alguém acha (e certamente há muitos) que partir para o tudo-ou-nada é legítimo na situação do Rio hoje, Tropa de Elite ratifica esse pensamento com uma estrutura dramática sem furos e altamente persuasiva. Agora, reconhecer o brilhantismo de Padilha como narrador não é a mesma coisa que concordar com seu discurso. Tropa de Elite é uma peça de convencimento das mais eficientes, por vezes sofisticada, mas não deixa de ser moralmente condenável. Não há guerra que justifique o atropelo da lei. Tortura e execução nunca serão justificáveis.
Uma cena em particular, já no fim do filme, é bastante emblemática: depois que os oficiais ameaçam violentar o garoto com o cabo da vassoura, ele confessa onde está encondido o traficante. A câmera deixa a laje, onde estava na altura dos atores em plano aberto, e faz um movimento em direção ao sol para fechar o plano.
Mirar o céu não é só um raccord (ligação que dá fluidez entre o fim de um plano e o início do próximo) genérico. A contra-luz cega a lente com uma brancura que, metaforicamente, "limpa" o abuso a que acabamos de assistir. O sol simbólico pode ser uma esperança, pode ser o aval divino à tortura, pode ser lido de maneiras diversas - inequívocos são os meios cinematográficos que o diretor Padilha usa para legitimar os fins bárbaros da tropa.
fonte: Omelete
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abcs